A declaração xenofóbica do Deputado Nicoletti, contra venezuelanos, é perigosa e equivocada.

I -  DECLARAÇÃO  VIOLA OS PRINCÍPIOS DO DIREITO INTERNACIONAL

 

       O Deputado Federal Nicoletti (PSL), candidato a prefeito na cidade de Boa Vista, reproduziu um slogan com cunho xenofóbico: "Na minha gestão municipal, venezuelano não terá privilégio". Posso garantir a você, caro(a) leitor(a), de como esse slogan é perigoso e pode incitar a crimes de ódio. Porque quando o detentor do poder de fala, tem um público e repercussão de grande alcance, forma opinião e pode desencadear diversas ações (inclusive violência contra minorias). Um exemplo deste perigo foi o período do nazismo, onde os detentores do poder acabaram por disseminar a ideologia da eugenia para a maioria do povo alemão. Para quem não sabe, eugenia é a teoria que defende a existência de uma raça pura (a ariana). Como resultado dessa propaganda xenofóbica, pelo Mein Kampf, boa parte do povo alemão passou a agredir fisicamente, moralmente e assassinar friamente os judeus que residiam na Alemanha e Polônia. Depois que houve a massificação desse ódio coletivo, ele foi positivado através das leis antissemitas, as famosas Leis de Nuremberg, que proibiam até os alemães de relacionarem-se matrimonialmente com judeus. 

        O magistrado da Corte Interamericana de Direitos Humanos, Raul Eugênio Zaffaroni, em sua obra "A Questão Criminal", fala sobre como a questão da violência contra minorias manifesta-se como uma pulsão latente do processo de colonização, existe uma intrínseca relação entre criminalizar determinados grupos étnicos e a necropolítica. Bom, o que eu quis dizer com isso? Quando o homem europeu chegou às Américas, utilizou-se da violência para dominar as regiões e seus povos autóctones, todavia os resquícios do processo de colonização persistem até a atualidade. Para Zaffaroni, essa violência refletida aqui (nos tempos de hoje) tiveram seu epicentro na Europa - por isso o conceito de pulsão latente. E qual a relação disso com a necropolítica? Antes de mais nada, caro(a) leitor(a), explico que a necropolítica é um conceito criado pelo filósofo camaronês Achille Mbembe e elucida que o Estado decide quem irá viver e quem irá morrer. Evocando novamente o Raul Zaffaroni, ele cita no  "A Questão Criminal" que uma a cada cinquenta pessoas, no mundo, já fora vítima de agressão ou morte por parte do Estado no qual reside. Uma pessoa a cada cinquenta pessoas é um número bem preocupante, porque mostra como muitas pessoas morrem em tempos de paz. Considerando aqui, período de paz, momentos  nos quais os países não estão em guerra com outros países. Para entender a necropolítica é preciso estar bem nítido, na mente, que minorias sociais e étnicas são marginalizadas em detrimento dos grupos hegemônicos e padrões. Portanto quando há essa estereotipação, sobre um grupo, ocorre a desumanização e incitação ao ódio. Quais seriam, por exemplo, essas minorias sociais ou étnicas? Afrodescendentes, indígenas, população LGBTI,  refugiados, imigrantes (no caso o alvo de Nicoletti foram os venezuelanos). Nos noticiários policiais quem sempre são as maiores vítimas de mortes? Negros, indígenas, moradores das periferias, imigrantes e pessoas transgêneras. 

       Conseguem entender o perigo quando o discurso, a fala, está nas mãos de quem detém algum tipo de poder de comunicação? As questões sobre a imigração serão tratadas com desconhecimento e abarcarão uma extensa seara de preconceitos, dos mais diversos e abjetos. Para finalizar, por que mencionei que isso é um resquício da colonização? Porque teoricamente os Estados conseguiram sua independência das colônias, porém o reflexo dessa opressão ainda persiste em vários segmentos da sociedade. O nativo, que na época colonial fora escravizado, atualmente no período pós colonial é demonizado com estereótipos que o subjugam por conta da pobreza e exclusão (percebam que a questão é histórica).  Nos Centros das cidades, vive a classe dominante que tem a proteção estatal, nas periferias é que estão distribuídos os negros e demais grupos étnicos. A forma como o Estado lida com a população do Centro e das periferias é gritantemente distinta, essa forma de tratar os mais vulneráveis com estigmas e ódio -  é o reflexo remanescente do período colonial. Em suma, a colonização formal acabou mas ela persiste através de outros mecanismos. Entender isso é fundamental para compreender o perigo de incitar a xenofobia. O Estado não deve fazer essa distinção entre "nós" e "outros", porque foi justamente esse tipo de distinção que desumanizou os judeus na Alemanha dos anos quarenta. Porque "a difamação é o estágio inicial da construção da identidade da vítima a ser massacrada, os meios de comunicação acabam sendo os disseminadores em larga escala da construção dessa identidade" (ZAFFARONI, 2013). Por isso os espaços públicos precisam refletir e projetar ações que visem extirpar, da sociedade, ideias que incitem o ódio e o preconceito. Zaffaroni usa o termo "massacre" porque, segundo ele, existe uma grande assimetria entre o poder de força um governo (que detém monopólio legítimo da força) e o sujeito individual. Portanto a violência estatal é desproporcional à capacidade de defesa de um indivíduo, assim sendo as violências oriundas do Estado são compreendidas como massacres. Exemplo de massacre: o sujeito desarmado que acabou sendo morto, pela polícia, na periferia, sem ter cometido crime algum. Ou seja, a pessoa não teve oportunidade de apresentar a ampla defesa e o contraditório. Ela foi morta sem passar pelo Poder Judiciário. Esse é o exemplo mais explícito de necropolítica.


Slogan da campanha do candidato Nicoletti

    Outro detalhe importante, é que essa declaração viola os tratados dos quais o Brasil é signatário. Depois da Segunda Grande Guerra Mundial, os países chocados com os horrores da guerra, resolveram criar uma organização internacional mais elaborada e eficaz que a Liga das Nações (Sociedade das Nações), afinal pressupõe-se que se a guerra não foi evitada é porque a Liga das Nações falhou em mediar as relações multilaterais entre os Estados. A Liga das Nações foi criada em 1919, pelo Tratado de Versalhes, logo após o término da Primeira Guerra Mundial. No entanto não foi capaz de impedir a eclosão da Segunda Guerra.

    A ONU surge, no período pós-guerra, e assim criou-se o Sistema Universal de proteção dos Direitos Humanos. O Direito Internacional, nesse período pós-guerra, ganha uma outra perspectiva e passa a priorizar as relações multilaterais entre os países, através dos tratados internacionais. Mesmo que cada país tenha seu sistema jurídico, o tratado faz com que todos os signatários cumpram os acordos estabelecidos no tratado. Todos, sem exceção. Quando um país assina um tratado, significa que ele tem ciência de que deverá cumprir o que fora estabelecido, todavia só terá obrigação de fato quando ratificar o tratado no direito interno. O que significa isso que acabei de dizer? Dizem que o juridiquês é complexo e às vezes atrapalha o texto, porém acredito que certas noções de Direito devem ser melhor explicadas para a população. Esse é o cerne do meu texto, criticar com embasamento o slogan xenofóbico do Deputado Nicoletti. Voltando ao tratado, quando um país o assina, leva um tempo para ele ser aprovado no Congresso Nacional para que, de fato, tenha valor de lei. A partir do momento que é promulgado pelo Congresso Nacional, aí o tratado terá validade. Vou reproduzir aqui o que diz no art. 5º da Constituição Federal:

"Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
§ 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004) (Atos aprovados na forma deste parágrafo: DLG nº 186, de 2008, DEC 6.949, de 2009, DLG 261, de 2015, DEC 9.522, de 2018 )".
 
       Além do Sistema ONU (que é o Sistema Universal de Direitos Humanos), há também outros Sistemas regionais: Sistema Interamericano, Sistema Europeu e Sistema Africano de Direitos Humanos.
 
    Como exposto acima, um tratado internacional de direitos humanos tem valor de emenda constitucional quando for aprovado. Por que fiz questão de fazer toda essa introdução teórica? Para esclarecer que o Brasil é signatário da Convenção Interamericana de Direitos Humanos e portanto deve cumprir o que está definido nela. Aliás o tratado surge em 1969, porém o Congresso brasileiro só incorporou ao sistema jurídico brasileiro em 1992. Outro fato importante, para análise, é que a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, também data de 1969 porém o Brasil só incorporou ao sistema jurídico em 2009. Por que esse hiato temporal, digamos, uma demora para cumprir? De 1964 a 1985 o Brasil passou por um regime militar que realizava torturas, assassinatos, e se fazer cumprir tratados internacionais de direitos humanos não era interessante aos gestores do país nesse período. O Controle de Convencionalidade, da corte IDH, no contexto da América Latina, significa que um país é obrigado a ir adaptando seu Direito interno, a sua realidade jurídica e administrativa, de acordo com o que fora estabelecido em tratado - levando em consideração não somente a convenção mas como também acolhendo jurisprudência (decisões já tomadas sobre determinados temas). Essa obrigatoriedade só surge quando um país, através do Congresso Nacional, promulga esse tratado e então o mesmo passa a ter validade no respectivo sistema jurídico interno. No caso do Brasil, precisa sempre ajustar as ações estatais de acordo com o estabelecido na Convenção Interamericana de Direitos Humanos. Isso significa, de certa modo, a valorização do principio de proteção pro persona que nada mais é que a proteção da pessoa humana. A convenção existe, principalmente, para impedir e coibir abusos estatais contra indivíduos.
      Outra fonte normativa importante para embasar esta análise é a Lei de Imigração (Lei 13.445 de 24 de maio de 2017). Ela traz, no artigo 3º, os princípios e diretrizes da política migratória brasileira:

"Art. 3º A política migratória brasileira rege-se pelos seguintes princípios e diretrizes:
I - universalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos;
II - repúdio e prevenção à xenofobia, ao racismo e a quaisquer formas de discriminação;
III - não criminalização da migração;
IV - não discriminação em razão dos critérios ou dos procedimentos pelos quais a pessoa foi admitida em território nacional".

      A Lei 13.445/2017 deixa bem claro que a xenofobia não faz parte das diretrizes que engendram a política migratória brasileira. Portanto o Deputado Federal claramente violou o art. 3º da supra citada lei, porque além de agredir especificamente os venezuelanos (também ofende, de maneira geral, demais imigrantes que estejam no Brasil). A imigração é um direito, pois muitas são as situações que podem fazer uma pessoa a sair de sua terra natal: correr perigo de vida, violações de direitos, ameaças constantes, condições climáticas não favoráveis e perseguição religiosa, por exemplo. Não pretendo falar sobre a crise econômica na Venezuela, seus fatores, porém é claro para todos(as) que a Venezuela está vivendo um momento muito delicado em sua economia cuja base, praticamente, é a venda de petróleo cru. A imigração é um fenômeno antigo, que sempre acompanhou a história da humanidade, inclusive no final do século XIX e início do século XX o Brasil recebeu inúmeros imigrantes advindos da Europa e Ásia, que buscavam uma vida melhor e oportunidades de crescimento. O Estado brasileiro auxiliou os imigrantes nipônicos e europeus, inclusive com a cessão de lotes de terras para o desenvolvimento de atividades ligadas ao agronegócio. Portanto, historicamente falando, não há motivos para Nicoletti se opor aos imigrantes venezuelanos.

      

II - CONSIDERAÇÕES FINAIS

       Na primeira parte desse texto citei os tratados e convenções internacionais, a Constituição Federal e a Lei de Imigração. A visão do deputado acerca da imigração, como elucidado acima, é uma visão que não condiz com as diretrizes estabelecidas pelo governo brasileiro no que se refere à imigração. Aliás a lei é bem clara, que não deve existir distinção alguma entre nacionais e estrangeiros. Aliás essa visão acerca do que é ser estrangeiro também deve ser reanalisada com o tempo, porque se um sujeito acaba por conseguir a naturalização brasileira - ele deve ser visto como um nacional (sem esse estigma de estrangeiro). Muitos países, com taxas de natalidade baixas, estão recebendo imigrantes como opção para o mercado de trabalho. No caso dos refugiados, que é outra situação, uma pessoa só vai receber status de refugiada (por parte do país na qual se solicita o refúgio) se for comprovada sua idoneidade moral. O governo brasileiro é bem rigoroso quanto a documentação, portanto quando alguém duvida do caráter de um estrangeiro com status de refúgio, sem nenhum motivo aparente, na verdade é a manifestação da xenofobia tentando introjetar difamação e preconceito contra minorias étnicas.

    Várias organizações não governamentais, universidades brasileiras, inclusive instituições religiosas, tem prestado auxílio aos imigrantes para que eles possam ser introduzidos na sociedade brasileira. Há projetos que auxiliam o retorno aos estudos (Ensino Fundamental, Médio e Superior), com a burocracia de documentações, com oferta de empregos e cursos profissionalizantes. O imigrante que adentra o Brasil, busca estudar e trabalhar, portanto existe toda uma boa intenção em ser mais uma pessoa colaborando para o crescimento do país. Não é possível, que em pleno século XXI, ainda tenhamos pessoas públicas proferindo discursos desumanos contra quem já se encontra em vulnerabilidade. O filósofo, Jacques Derrida (em Anne Dofourmantelle  convida Jacques Derrida a falar da Hospitalidade),  falou acerca da hospitalidade e de como o imigrante enfrenta dificuldades de adaptação. São inúmeras dificuldades, principalmente quando o imigrante não advém de um país com o mesmo idioma, com hábitos culturais diferentes,  assevera como muitas vezes o indivíduo sente em seu coração uma "eterna sensação de não pertencimento, de vazio emocional".

    O Estado brasileiro é signatário de tratados internacionais, portanto deve agir de acordo com o que está estipulado nas convenções e leis. O Deputado Nicoletti está utilizando seu poder, como legislador e pessoa pública, e agindo em desacordo com o Controle de Convencionalidade definido pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. É dever do Estado acolher, respeitar e proteger o imigrante. Independente da sua nacionalidade, origem étnica, religião, sexualidade e gênero. Agir de acordo com a lei não é tratar com privilégio, é agir exatamente como deve-se agir. Independente se o venezuelano for chavista ou pró-Guaidó, ele deve ter respeitada a sua humanidade e o seu direito à imigração. Não nos cabe, muito menos ao Estado, fazer qualquer tipo de distinção que vise segregar ou estigmatizar. A humanidade  precisa ser compreendida e respeitada, renegando qualquer diferenciação ou subalternidade da pessoa humana.

Texto por Almir Luz

 

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