Conto de terror: o assassinato em frente ao Bec Bar

O assassinato em frente ao Bec Bar



I -  A SENTENÇA


       Toulon sempre rezou o terço para dormir, naquela noite não rezara e inclusive retirara do pescoço o crucifixo de prata que possuía. Vagarosamente guardou-o em uma caixinha de pratarias, posteriormente olhou-se no espelho, arrumou sua gravata e penteou os cabelos. Estava impecavelmente alinhado. Sua fé não era capaz de deter o que percorria no átrio do espírito. O ódio fervilhava em suas sinapses.
Colocou a mão no queixo, como quem faz uma expressão de profunda reflexão, e  subitamente telefona para alguém. 

- Alô?
- Gostaria de falar com Kelly Mendes.
- Faz anos que ninguém me chama por esse nome. Quem é?
- Sou eu, Eduardo Toulon, caríssima. Preciso que encontre-me daqui meia hora.
- Estou morando no Largo da Ordem, na Trajano Reis. O que está acontecendo?
- Pelos velhos tempos, por favor, venha até o Largo pois estarei ao seu encontro.
- Por que eu deveria ir encontrá-lo?
- Estou pensando em matar uma pessoa.
- Como?
- Exatamente isso que falei.
- Em quinze minutos estarei sentada em frente ao Cavalo Babão. Trajada com um casaco de pele branco, vestido vermelho e uma bolsa branca da Colcci, dentro da mesma trarei um presente que não poderá ser aberto na rua. Ok?
 - Pessoalmente falo. Tchau.

       Toulon morava na Praça Santos Andrade, estava bem próximo de Kelly. Inclusive a mesma chegou primeiro ao Cavalo Babão, sentou em banco de cimento e acendeu um cigarro. Era uma imagem rara. Uma senhora idosa, magérrima e elegante no meio de tantos jovens e adolescentes, sua singularidade destoava do contexto social  e da vida noturna curitibana. Olhava a multidão que bebia,  fumava e conversava, enquanto  Eduardo não chegava.

- Cheguei, Mon Cher!
- Você não envelheceu nada, rapaz! Continua com o mesmo jeito de menino.
- Continua magnífica.
- Já fui magnífica. Quando fazia trottoir na rua do Ferroviário. Hoje sou uma senhora decrépita que lembra das glórias de um passado morto. 
- Preciso de uma arma.
- Eu sei. O presente é esse! Essa arma foi minha durante anos, toda puta que se preze carrega uma arma consigo. Então já tem a sentença?
- A sentença será o estrondo do tiro. 
- É o máximo que posso fazer por ti. Depois disso irei embora, não me procure mais. Até agora não fiquei sabendo a razão pela qual decidiu que este homem merece morrer.
- Um homem merece morrer quando ultrapassa certos limites da honra, digamos que ele despertou meu ódio.
- Tem certeza que gostaria de largar tudo que tem?
- O que eu tenho?
- Uma vida que faria inveja a muitos homens da sua idade. Você saiu da facção pois queria ter uma realidade diferente, não queria acabar em uma penitenciária como um reles homem. Faz dez anos que deixastes o crime, porém o crime persiste em ti. Vale a pena lutar por essa honra?
- O crime está no meu instinto, no meu DNA, no meu sangue, na minha índole. Depois de uma certa idade, a cabeça muda, o ódio passa a ser tangível.
- Você foi um dos melhores colaboradores que já tive, senti muito quando decidiu me abandonar.
- Pelos velhos tempos, não faça pergunta. Sei o que estou fazendo.
- É culto, sabe como funciona o sistema, possui erudição, tem certeza que um tiro em público é a solução? Algo explícito? Não poderia acabar com seu desafeto de uma outra forma? Fazendo-o cair em ruína nos negócios, em desprestigio social?
- Estou inexorável, decidido, não pretendo mudar a decisão que decretei em minha mente. Ele deve morrer de forma brutal.
- Boa sorte então, adeus.

      Acende mais um cigarro, dá um beijo no rosto dele e caminha vagarosamente pela Jaime Reis. Abre a bolsa, encontra um frasco, retorna em passos rápidos diante do mesmo e sussurra:

- Cianureto. Nunca se sabe quando irá precisar dele.
- Como conseguiu isso?
- Não importa como consegui, importa é que agora isso é seu. Guarde bem esse frasco...
- Adeus, mon cher, e muito obrigado por tudo.
- Lembre-se que toda vingança tem seu sabor amargo, ma chérie.
- Oui. Não é a toa que você foi a maior cafetina do Centro de Curitiba durante duas décadas.
- Cafetina não, sou dama da noite, dos áureos tempos das boates. Belle Époque. Olho essas garotas arrogantes, com suas juventudes, com desprezo no olhar, mal sabem elas que ainda consigo muita coisa. Os velhos ainda mandam nessa cidade. Estou decrépita mas ainda tenho bons contatos. Se precisar fugir, vá para Corrientes e procure por Jhuly. A Jhuly foi uma das minhas meninas. Neste bilhete consta o endereço e telefone dela. Receberá abrigo e alimentação por um mês, depois disso deve partir. É o máximo que posso fazer.
- Merci.
- Tem certeza? Pela última vez perguntarei, pois podemos conseguir outra pessoa para executá-lo.
- Tenho, não quero que outro o execute, quero sentir o prazer de vê-lo morrer pelas minhas mãos.
- Ok então, au revoir.
- Foi um prazer trabalhar para a senhora, Kelly Mendes.
- Quando mataram meu marido, você ajudou-me a fazer justiça. Justiça que está aquém de processos e tribunais, justiça que se faz na ponta da bala. Serei eternamente grata. Agora vá.
- Au revoir.


II - TIRO CERTEIRO


       Na noite de sexta-feira a rua General Carneiro fica cheia de pessoas, algumas são alunas da Universidade Federal do Paraná e outras são apenas jovens de diversos bairros de Curitiba. Aproximadamente umas trezentas pessoas estavam nas calçadas, ainda mais em dia de calor. Quanto mais quente for o dia, mais pessoas estarão buscando por cerveja e diversão.
       O odiado estava parado, em uma roda, com algumas amigas. Segurava um copo de plástico com cerveja, estava completamente distraído e vulnerável. Toulon entra no bar, tranca-se no banheiro do Bec e retira a caixa do bolso, colhe o revólver de dentro da mesma. Estava com seis balas no tambor. Dispensa a caixinha na lata do lixo. Coloca a arma na cintura e esconde com o casaco. Abre a porta do banheiro e caminha vagarosamente, como quem não tem pressa, pede uma dose de cachaça no balcão para o atendente e toma em um gole só. Vai até a porta de saída, observa a multidão e encontra o infeliz inimigo. Apenas uns dez passos, de distância, o separavam da sentença de morte.
      O rapaz tentou fugir, mas era tarde, antes que pudesse clamar por misericórdia, levou um tiro certeiro em sua testa. Toulon não tremeu, apertou o gatilho com extrema firmeza e confiança. O rubro sangue espirrou em alguns copos de cerveja, começou a jorrar pelo asfalto, enquanto umas mulheres gritavam apavoradas que um homem havia sido assassinado. O tiro foi fatal. A bala saiu pela nuca, destruindo o osso occipital e expondo massa cefálica sobre os ladrilhos de calcáreo. Estava morto. A histeria e o pânico tomam conta da multidão. Nessa confusão, com muita astúcia, conseguiu fugir para longe.  Foi morte instantânea. A calçada ficou avermelhada com o sangue arterial que fluía da cabeça estourada, os hippies saíram em retirada quando ouviram o disparo, os artistas de rua pararam de vender seus brigadeiros de haxixe e os compositores de hip-hop desligaram suas caixinhas de som.
       O Bec Bar fechou suas portas, rapidamente, enquanto algumas mulheres assustadas  gritavam histrionicamente. Toulon, após atirar, deu um leve sorriso e subiu em uma bicicleta aleatória que não estava com corrente e nem cadeado. Seguiu pela rua  Amintas de Barros no sentido do supermercado Extra Alto da XV. No meio do tumulto, ninguém ousou capturá-lo ou observar para onde fugia. Eram exatamente vinte e três horas. Lembrou-se dos velhos tempos em que trabalhou para Kelly.



III - O CARRINHEIRO  CATADOR DE RECICLÁVEL


       Conseguiu, com muita agilidade, dispersar-se daquela multidão, no entanto ainda estava próximo. Poderia ser facilmente alcançado.Observou um carrinho que é usado, por catadores, para coletar materiais recicláveis nas ruas. O carrinho era fechado e estava com isopor.
- Ei irmão, firmeza?
- Beleza?
- Quer cinquenta reais?
- Claro, é "nóis irmão".
- Preciso entrar no seu carrinho e que você  leve-me até o Guadalupe. Ninguém pode saber que estou aqui dentro, ninguém.
- Entra aí.

       Viaturas da Guarda Municipal e da Polícia Militar rondeavam o perímetro do crime. O carrinheiro começou a transportar Toulon, quando um guarda municipal o indaga sobre a presença de um sujeito ruivo, magro, de olhos castanhos, que teria assassinado um homem em frente a um bar. Dissimuladamente o catador pergunta ao guarda  se o mesmo gostaria de inspecionar seus recicláveis, o que foi prontamente negado. 

- Ô irmão, quer que te leve até onde?
- Até o Hotel Inca, que fica em frente ao terminal Guadalupe.  Gostei de sua astúcia.
- "É nóis, irmão".
- Antes preciso que entre em uma farmácia e compre algumas coisas para mim.

         Como prometido, Toulon foi deixado bem em frente ao terminal Guadalupe. Antes de partir, pediu ao carrinheiro que entrasse na farmácia para comprar tinta para cabelo e lâmina de barbear. Decidiu pintar de preto seu cabelo e raspar o bigode. Precisava sair logo da cidade. Curitiba estava ficando pequena, as redes sociais locais já noticiavam o assassinato e divulgavam um retrato falado.



IV - HOTEL INCA 

      Facilmente conseguiu adentrar o hotel, informando um número falso de RG. Entra no quarto e começa a preparar a tintura de cabelo, enquanto vê no Facebook que estão o procurando na cidade. O retrato falado lembra muito o seu biotipo e características morfológicas. No corredor havia uma prostituta usando crack, trajando apenas fio dental, a qual ficou observando-o de forma analítica. Logo ouve-se fortes batidas na porta.

- Quem é? (diz ele desconfiado)
- Edijane, abre a porta aí irmão.
- O que deseja?
- Vi no Facebook que mataram um cara lá perto da Universidade. Te reconheci pelo sapato e pela gravata. "Óia" essa foto, é você cuspido e escarrado. Vou falar para o porteiro.
- Não sei do que está falando.
- Foi você que matou um "maluco lá nas quebrada de cima".

      Toulon tinha ciência de que não poderia atirar no hotel, pois seu trinta e oito é barulhento e não possui um silenciador.  Chamaria facilmente a atenção das pessoas e das autoridades locais. Lembrou-se que ganhara um frasco de cianureto.

- Ei, moça, pago pelo teu silêncio. Moeda de troca, moeda boa. Vem comigo no quarto para tratarmos disso.
- Claro, irmão. Tua foto está até no site da Banda B e na Tribuna do Paraná.
 - Gosta de cerveja? Cerveja, umas pedras e mais um dinheirinho. Curte?
- Curto, brother.
- Vai lá e pega uma para nós, na recepção.

       Hotel barato não tem serviço de quarto. Ela ingenuamente foi buscar a cerveja, enquanto ele manejava o frasco com cianureto e selecionava alguns mililitros no conta gotas.

- Cheguei com a bera, irmão.
- Trouxe dois copos?
- Sim.
- Na real, irmão, de fé, na humildade, é você o assassino. Né?
- Claro que não, estou sendo acusado injustamente. Tem que acreditar em mim.
- Mas e aquela foto, irmão?
- É montagem. Sou um cristão fervoroso. Tome, dar-te-ei R$ 100,00 (cem reais) como prova de amizade.
-  Nossa, você parece ser gente boa.

         Nisso ela pega um cachimbo e começa a fumar crack dentro do quarto. Nesse exato momento Toulon pinga o cianureto no copo e introduz a cerveja, a qual ela bebe frugalmente.

- Que cerveja gelada, gostosa. Estava precisando de uma boa bera, irmão.
- Eu também estou apreciando esse espetáculo à la Vaudeville.
- Vaude o que?


       Em questão de menos de um minuto, a mulher cai no chão desacordada, teve um infarto agudo do miocárdio. Perfidamente ele vai até ela e sussurra:


- Não deveria ter batido em minha porta, se deu mal.
- Ah (gemidos fracos de dor)

       Com a máxima calma, pinta o cabelo e raspa o bigode. Calculou um tempo suficiente para garantir que estivesse realmente morta por envenenamento. Percebeu que na mão da mesma estava a chave do quarto, então resolveu dirigir-se até lá  e inspecionar se tinha algo que pudesse lhe ser útil. Encontrou uma mochila que continha algumas roupas masculinas, assim trocou com as suas que estavam sendo amplamente descritas e expostas nas redes sociais. Jogou um cobertor pela janela, de forma que caísse bem na calçada da rua João Negrão. Friamente arrastou a jovem morta até debaixo da cama, colocou o colchão por cima, para que seu cadáver não chamasse a atenção tão imediatamente.
        Às duas horas da manhã, parte do hotel alegando ao porteiro que só iria fazer um lanche na rua e que mais tarde regressaria. Hotel de quinta categoria não serve lanche e nenhum tipo de refeição. Caminha com um cobertor nas costas, escondendo seu rosto das câmeras de vigilância,  disfarçado de reles morador de rua.  Ao chegar no pátio da rodoviária, joga o cobertor em uma lixeira e coloca um boné na cabeça. Pretende sair do país, dirige-se até a plataforma de viagens internacionais.



IV - NA RODOVIÁRIA


       Não poderia dirigir o seu carro e nem solicitar Uber, seria interceptado em alguma estrada. Teria que fugir do país através de um ônibus. Ao chegar na rodoviária comprou uma passagem para Corrientes, Argentina, e para sua sorte o embarque iria ocorrer daqui quinze minutos. Sem malas, apenas a roupa do corpo e o revólver na cintura. O motorista do ônibus exigia o documento de identidade, Toulon temia que a viagem pudesse ser abortada. Ironicamente, o motorista mecanicamente mal observou a identidade dos passageiros. Nenhuma câmera o flagrou, muito menos guarda municipal ou policial militar. Acreditava que a rodoviária seria a etapa mais complicada da fuga, no fim por falhas na segurança, embarcou sem nenhum transtorno.
       A entrada no ônibus foi possível, sabia que não poderia mais voltar ao Brasil. Compreendia que, de certa forma, estava morrendo também. Não esperava viver no interior de Corrientes, de lá pretendia passar pelo Paraguai onde pegaria uma embarcação para Guiné Equatorial.   Ao seu lado sentou uma simpática senhora sexagenária, segurando a imagem de Nossa Senhora de Guadalupe.

- Creo en la Virgen Santa.
¿Habla español?
- Un poquito, señora.
- Diós le bendiga.

     Conseguiu encantar e conquistar a simpatia da decana, que viu nele o bom exemplo do rapaz eclesiástico. Acima do bem e do mal. Bom moço. Fora dos estereótipos de criminoso. O cansaço era imenso, decidiu cochilar durante a longa viagem, sem remorso ou tensão, dormiu angelicalmente isento de qualquer peso  na consciência. Conforme indicado, procurará Jhuly. Nem mesmo Kelly soube o motivo real do assassinato, provavelmente o segredo fenecerá com ele.


*O conto é mera ficção, envolvendo locais públicos da cidade de Curitiba com a trama.

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