Conto: O nascimento de um assassino




I - TOMANDO A DECISÃO DE MATAR


       
       Hermann resolve ligar o seu computador e acessar alguns jornais para inteirar-se das notícias. É um jovem adulto, com seus trinta anos recém completos,  e sabia que o tempo vai mudando paradigmas na psiquê. A crueza da vida vai revelando, crucialmente, todos os meandros da realidade. Sem unguentos. Sem eufemismos. Sem alívios. A vívida experiência, no seu sentido mais empírico,  é uma voraz ferida lânguida que proporciona inevitáveis turbulências e reflexões. A práxis abala estruturas. Concordava em partes com Hobbes sobre a natureza humana, não enxergava bom prognóstico na bondade alheia. Apegou-se ao conceito de que o mundo é um constante estado de natureza, falseado por democracias e Estados, com um alto grau de periculosidade e maldade. Desprezava profundamente aqueles que faziam mal às pessoas mais vulneráveis e indefesas.  Enquanto o notebook inicia, resolveu ir até a cozinha preparar um drink de gin tônica com laranja. Assim que regressa à sala percebeu  uma notícia, na página inicial do navegador, relatando sobre um serial killer que matou cinco homossexuais na cidade de Curitiba. A notícia informava que as vítimas eram atraídas pela boa articulação do assassino, o qual detinha uma fala mansa e agradável, todavia  esses eram recursos utilizados para executar o propósito funéreo do assassinato.

       Ciladas mortais. Homens que praticam injustas ciladas, para Hermann,  são sujeitos exponencialmente abjetos e notórias ameaças à paz social. Sentiu um imperdoável ódio azíago por tal assassino, não estava disposto a perdoar. Sentia-se pessoalmente atingido por tais eventos. Decidiu que tal entidade deletéria deveria ser extirpada da cidade, caso contrário a rede maligna de homicídios insidiosos estender-se-ia por tempo indeterminado.

       Pensava consigo em como seria o perfil de tal assassino pérfido, planejava estabelecer estratégias assertivas para localizar e exterminar tal criminoso. Era uma questão de honra. Sua sensibilidade  tamanha valoriza a vida nos seus mais diversos nuances, execra aqueles que ferem pelo bel prazer de subjugar. Esses sim são seres nocivos, tal qual as ervas daninhas são à agricultura, conclui ele. A última vítima, ceifada pelo nefasto traidor, era um jovem estudante de Medicina. Uma morte indevida, injusta, precoce, e que estraçalhou o humilde coração de uma pobre mãe. 

- E quem liga para as pobres mães?  Uma mãe leva anos para criar, enquanto o mal leva segundos para dizimar. Quem liga para homossexuais mortos? Quem liga para homossexuais? (fala denotando tristeza)

       Olha-se no espelho, que aliás é um espelho de grande porte, aponta o dedo para a imagem refletida nele e diz firmemente:

- Esse cara vai morrer!

       Então coloca a mão no bolso da calça, segura o celular e celeremente começa a discar um número.

- Alô?

- Oi, amigo, tudo bem?

- Mais um menos. Tomei uma decisão seríssima e só poderei concretizá-la se tiver seu apoio.

- Nossa, até assustei-me aqui. O que foi?

- Está muito ocupado agora, Jhonny?

- Não, terminei agora os meus afazeres. Ia fumar um cigarro e corrigir as provas dos meus alunos.

- Venha agora para o Largo da Ordem. Estarei no Paradoja,  fica na Trajano Reis. Não tem erro. 

- Acho que no máximo em quarenta minutos chego.

- Ok. Em uns dez minutos já chego por lá e ficarei apreciando uns drinks.

- Até depois.

-Até.

       Após o término da ligação, apressa-se para terminar de trocar de roupa. Na verdade só troca de camisa, opta por uma roupa discreta e que esteja de acordo com o público assíduo do estabelecimento. Nada muito chamativo, pelo contrário, o objetivo é ser só mais um na multidão. Solicita um Uber com destino ao Paradoja enquanto fuma um cigarrinho de maconha. 



II - CONVERSAS NO PARADOJA


       Chegando ao Paradoja Hermann decidiu continuar apreciando o gin, solicitou um cocktail ao barman e sentou-se em uma mesa discreta. Em menos de quinze minutos Jhonny chega, com um grande sorriso no rosto, porém meio que sem entender todo o contexto. Nem passava pela cabeça dele que seu amigo pretendia arquitetar um homicídio contra um completo desconhecido, optou saborear um vinho branco  antes de iniciar o diálogo.

- Então, caríssimo, qual o motivo dessa reunião?

- Olha, vou ser direto!

- Pois bem...

- Olha, você tem compreensão do que é o preconceito?

- Sim, algo muito desagradável.

- Como você acha que a sociedade enxerga, na sua teia social, os gays?

- Discriminação total. Aliás mal entendem a diferença entre gays e trans, um ódio desmedido e irracional. É como se a sexualidade fosse um rótulo que define quem merece ser levado a sério na vida.

- Perfeito. Exatamente isso. Você já viu como comentam, nas redes sociais, as notícias sobre mortes de homossexuais? Geralmente no Facebook usam a reação Haha.

- Odeio quando usam Haha para postagens tristes.

- Sim, por aí já pode se ter uma noção do que é o preconceito. Discriminar alguém é odiar, é achar que a pessoa não é boa o suficiente, não é digna o suficiente, é inferior. é como se a dor dela não fosse dor, o sofrimento dela não fosse sofrimento. É uma desumanização total.

- Desculpa se parecer rude, você quer falar sobre homofobia? Tem certeza?

- Vi algumas notícias, nos últimos tempos, de dois assassinos que mataram vários homossexuais de forma injusta e traiçoeira. Um atuou em Curitiba e o outro em Londrina. Geralmente eles gostam de matar os mais efeminados, PCD, enfermos e idosos. Conquistam confiança e depois perfidamente investem contra às vítimas.

- Que horror!

- Eu odeio esses caras. Esse tipo de gente só continua fazendo tais atrocidades porque as pessoas ainda não deram conta da altivez que possuem. Se para cada assassino declaradamente homofóbico, houvessem execuções como represália, os índices de crimes deste tipo decairiam drasticamente.

- E?

- Então... Ambos foram presos e estão cumprindo sentença na Penitenciária Central do Estado, em Piraquara.

- Tudo bem. Entendi que esses dois malucos estão presos. Vá direito ao ponto.

- Quero eles mortos e que a sociedade saiba que tais mortes foram  motivadas por vingança em nome dos homossexuais inocentemente vitimados. A imagem deles, mortos, precisa ser altamente impactante. A horripilância necessita irradiar-se pela retina das pessoas ao ponto das sinapses gelarem os ossos.

- Não vejo necessidade disso. Eles já estão pagando pelo que fizeram.

- Uma das vítimas era um estudante de Medicina. Sua mãe tinha tanto orgulho, acreditava que ele teria um futuro brilhante e que sua missão materna havia sido cumprida. Um verme abjeto desse, certo dia, o ataca pelas costas e assassina por estrangulamento. A notícia literalmente dilacerou o coração da mãe do rapaz. O assassino está na PCE tomando três cafés por dia e fazendo duas refeições. Ele não pagou nada ainda, matou e está no lucro. Vida se paga com vida. Não há remédio que cure os corações destas mães, que metaforicamente morreram um pouco junto com seus queridos filhos.

- Eles são podres, amigo, eu sei. Por que entrar nessa briga que não é sua?

- Poderia ser você ali, morto, poderia ser eu... Poderiam ser nossas mães chorando, enquanto no noticiário alguns homofóbicos debochariam da nossa morte fazendo piadinhas sobre sexo anal e efeminados. Nossa vida não seria tratada como relevante, ali findariam-se todos os nossos sonhos. Um ser iníquo poderia usurpar o meu direito de viver uma vida plena e com êxito. 

- Você está disposto mesmo a cometer um crime? Olha, sou bem cético, sabe que não tenho medo de encarar aventuras. Não mesmo. Só que o plano necessita ser bem delineado ou podemos nós acabar dentro de duas covas.

- A diferença é que uma pessoa com cultura, estudada, bem articulada, é capaz de maravilhas sem deixar vestígios. Penso em convidar mais uma pessoa. Aí teremos condições de executar esse plano. Sabe por que liguei para ti?

- Por quê?

- Uma vez você dividiu comigo que presenciou um atentado homofóbico e seu ódio foi tão grande que teria matado, se pudesse, aqueles algozes. É sua vez de vingar-se. Vingue sua honra. Vingue a honra destas pobres vítimas.

- Quem são as outras pessoas envolvidas?

- Kelly Mendes.

     Jhonny tem uma crise de risos quase que incontrolável. As risadas foram tantas que até Hermann caiu na gargalhada.

- Amigo, que nome é esse? Quem é essa gente?

- A Kelly é uma prostituta aposentada, atualmente cafetina.

- Prostituta aposentada? (novamente cai na gargalhada)

- Presta atenção. Atualmente ela tem quase setenta e cinco anos. Nas década de setenta  foi a musa das calçadas, dos pontos centrais de prostituição. A Rua Cruz Machado e Ébano Pereira foram seus pontos por alguns anos, até montar  as suas casas de massagens e elevar-se ao status de cafetina. Depois em decorrência de sua excepcional beleza acabou amigando-se com um desembargador, tanto é que herdou uma cobertura no Centro de Curitiba.  Não para por aí. Um dos motivos do êxito dela, como dama da noite, adveio da rede de conexão proporcionada por seu amante. Assim ela foi ganhando a simpatia dos delegados regionais, dos guardas municipais, dos policiais militares, nunca as casas de drinks da Kelly sofreram alguma autuação. Ela começou como prostituta, na rua, prosperou e tornou-se uma poderosa cafetina. Cafetina boa, de êxito, nunca é desmascarada ou sai em manchetes. A própria Kelly mesmo disse que isso é coisa de puta mixuruca, ser exposta por pequenas infâmias é inerente ao baixo meretrício.

- E da onde você conhece essa mulher? Vamos, explique-se.

- Quando eu tinha dezessete anos, quase dezoito, participei de um vernissage e conheci uma simpática senhora. Elegante, com roupas de alta costura, esbelta. O estereótipo de uma socialite. Nesse vernissage conheci quem seria a minha primeira namorada, desde menino sempre interessei-me por arte. Arte é o que traz beleza a esta dura vida.

- Olha, já gostei dela. Prossiga...

- Namoramos por  quatro anos, dos meus dezessete aos vinte e um. Acabei conseguindo um bom entrosamento nos seus negócios, em pouco tempo já estava auxiliando com as remessas bancárias e transações. Puteiro dá muito dinheiro. Dizem que as pessoas não ficam sem mercado e farmácia. Errado. Não ficam sem puteiro também, sexo é um segmento bilionário. Voltando ao assunto, então como todas as idas ao banco foram exitosas, a confiança foi crescendo com o tempo em decorrência das responsabilidades que assumi. Sei que nela posso contar, o namoro acabou mas o respeito familiar continua. Depois ela soube que eu passei a relacionar-me com homens. No começo ficou impressionada, foi uma informação inesperada, depois reagiu bem e até desejou que eu fosse feliz no amor. Faz uns oito anos que não a vejo mais. 

- Mano, você teve uma experiência bem atípica na juventude. Qual a importância dela na atualidade?

- Com a Kelly consigo arma sem burocracia, alguns tipos de venenos mortais, contato com pessoas de altas patentes e origem nobiliárquica. Tudo que precisamos.

- Saquei. A Kelly é uma espécie de Don Corleone da noite curitibana. Não seria mais fácil pagar para algum detento lá envenenar a comida deles? Não acha muita confusão e gente envolvida?

- Não! Muito fácil. Eles precisam morrer tendo ciência de que estão morrendo por serem homofóbicos. Quero criar uma atmosfera de horripilância, um terror jamais visto, que a ânsia seja análoga à ânsia. Não entendeu ainda? Eu vou matar, deixar no ambiente elementos que caracterizem a vingança, retirar-me do local sem ser identificado ou punido. Crime perfeito. Dessa vez eu tenho a intenção de causar dano, usando todo meu conhecimento e habilidades especiais. Kelly é discreta.

- E a minha função?

- Você vai acompanhar-me na missão de convencer a Kelly e assessorará o planejamento.

- Como assim assessorará? Não respondi ainda!

- Amigo, por favor?

- Está bem. Vamos matar essas escórias homofóbicas!

- Um brinde à morte desses vermes!

- Um brinde!

- Então, caro, teremos que convencer Kelly.

       Hermann encontra na agenda o telefone de Kelly e, com esperança, torce para que ainda seja o mesmo número. Decide fazer a terceira e última tentativa, quando uma voz rouca com sotaque francês atende:

- Oui?

- Kelly?

- O que deseja monsieur?

- Mon amour, pour tout l'amour que nous avons déjà vécu, j'ai vraiment besoin de ta collaboration dans un plan. Plus d'informations uniquement en personne.

- Sabe o Hotel Pestana? 

- O do Batel?

- Troquei a cobertura no Centro por uma no trigésimo andar no Pestana. Maravilhoso aqui. Avisarei aos recepcionistas sobre sua visita. Não demore, venha logo.

       Solicitam um Uber com destino ao Hotel Pestana, no Batel, para tratar mais detalhadamente do plano com Kelly.


III - NO HOTEL PESTANA


       O Uber os deixou na Comendador Araújo, bem em frente ao Pestana, na porta do hotel dava para perceber que já estavam à espera deles.

- Olá, boa noite!

- Viemos visitar a sra. Kelly Mendes.

- Trigésimo andar, por gentileza só preciso de um documento com foto de vocês para registrar suas entradas.

       Assim que o elevador chega ao trigésimo andar, é possível sentir uma fumaça de cigarro e La Vie en Rose de Édith Piaf tocando bem alto no andar. Na sala há uma piscina térmica, decorada em mármore vermelho italiano e que dispõe de um projetor de cinema com duas potentes caixas de som profissionais. Kelly era ululantemente uma senhora bem idosa, todavia sua estética a fazia parecer uma sexagenária. O dinheiro permite bons cuidados estéticos, quem vive bem não envelhece tanto. Dinheiro não era o problema. Com um roupão vermelho da Versace, tomando água de côco em uma taça de cristal Swarovski e com uma cigarilha na outra mão, inicia a conversa.

- Mon Dieu! Você cresceu, está mais bonito. Tanta vida pela frente, enquanto eu estou rica e decrépita.

- Você mais do que ninguém sabe como sou sincero. Preciso muito da sua ajuda.

- E como posso ajudar?

- Preciso matar uma pessoa.

- Ah sim. Você quer matar alguém, não diz o motivo, e quer minha contribuição em uma insanidade dessas?

- Não é insanidade. Ele é um maldito. Um serial killer de homossexuais que só matou pessoas com ensino superior, trabalhadoras, honestas, pelo simples fato delas serem homossexuais. Você, mais do que ninguém, sabe como temos nazistas aqui em Curitiba. De forma inédita gostaria de protagonizar um crime às avessas, que um homofóbico seja barbaramente assassinado e com repercussão pública. Isso gerará precedentes para mais pessoas tomarem coragem, só assim vamos coibir a violência. O discurso pacífico não tem surtido efeito mais.

- Tudo tem um preço, queridinho. O que eu ganho com isso?

- Em gratidão  passarei uns tempos contigo, aqui na sua piscina, relembrando os velhos tempos. Farei uns agradinhos os quais serão apreciados.

- Você não disse que era gay?

- Não corta o clima Kelly. Não faz pergunta difícil, não estrague o rolê. Se eu to na vibe de curtir contigo, entra nessa vibe. Não viaja.

- Baixou a erudição? Rolê?

- Nossa erudita, sei a erudição das putinhas lá na zona. Pegar ou largar.

- Eu lá sou mulher de pegar ou largar? Ora, que insulto!

-Talvez não tenha sido uma boa ideia ter vindo aqui, vamos embora Jhonny. Ela não me ama mais, já esqueceu de tudo.

- Espera! Fique comigo dois meses e será tratado como um príncipe. Em troca ajudo no seu plano. Porém nada de homens ou mulheres, terei que ser a única na sua vida durante esses dois meses.

- Feito!

       Nisso ela tira o roupão, está usando um biquini da Versace, e o abraça pelas costas. Começa a fazer uma massagem no pescoço dele quando Jhonny avisa que está um pouco sem jeito. Então ela recupera a postura, veste novamente o roupão e os convida para tomar um drink. No que ela vai preparar um drink, Hermann cochicha para o amigo que sempre foi honesto e nunca gostou de usar as pessoas para seus objetivos pessoais. Só que, neste caso, ele tem plena ciência da imprescindibilidade de Kelly  nesta empreitada. Então terá que seduzi-la pois somente assim haverá colaboração.

- Meninos, voltei com um drink espetacular. Usei um dos melhores gins do mundo. Provem!

- Muito bom. Esse aqui é Jhonny, ele é meu amigo e está disposto a ajudar.

- Seu amigo ou algo a mais? Eu acho que você é bissexual, porque quem pega os dois é bi. Não acho que seja gay.

- Kelly não seja deselegante com o convidado. Ele é meu amigo. Se você ficar perguntando de sexualidade vou perder a libido e não terá diversão íntima. Aliás, homens gays também mantém boa amizade entre si. Sexualizar tudo é preconceito! Amizade é amizade independente de orientação sexual.

- Tem minha atenção, fale! Mon chéri, dentro da penitenciária não temos como entrar. Não há como entrar em uma cadeia sem ser identificado ou monitorado. Essa hipótese, antecipo, não  pode ser cogitável.

- Eu tenho um conhecido que trabalha lá no turno da madrugada, vi nos jornais que a perícia de um dos assassinatos será daqui dois dias, informar-me-ei melhor com ele. Usarei a justificativa de que ONG's pretendem protestar contra a homofobia e gostariam de saber os horários exatos do transporte. Essa informação ele não negará, o conheço bem. Para isso teremos que usar radios comunicadores, falar na linguagem Q, obter armas e dois veículos. Pelo que tenho averiguado, eles serão vigiados por dois agentes apenas e um deles é PSS.

- PSS?

- É funcionário público temporário, contrato de um ano, não tem a mesma preparação física e técnica. Chama-se Processo Seletivo Simplificado.  Melhor ainda. PSS nem anda armado, no máximo segura uma doze dentro da unidade prisional.

- O objetivo é render o veículo e sequestrar  um dos psicopatas? E depois?

- Ih, aí vem a melhor parte. Por enquanto vamos nos ater ao sequestro.

- Tem muita coisa para ser feita ainda, estou convidando-os para que hospedem-se nos meus aposentos. Aqui há muito espaço, acomodem-se e sintam-se em casa. Por ora devemos descansar um pouco.


IV - ARQUITETANDO O SEQUESTRO


      Kelly acorda apaixonada, solicita à recepção que tragam o melhor café da manhã para seus convidados. Para Hermann um café mais especial, com direito à bandeja  trazida diretamente na cama. Um café da manhã digno de pessoas importantes, com frutas exóticas, café javanês, jamón, queijo Roquefort, medialunas, caviar e champagne Dom Pérignon. Na verdade o contexto denotava similaridade com um brunch. Pelo comando de  sua voz   a assistente virtual Alexa abre as janelas, aciona o projetor que começa a exibir O Abominável Dr. Phibes.

- Bonjour, dormiu bem?

- Dormi sim e acordei varado de fome. Antes quero fumar meu baseadinho, o dia só começa bem se tiver uma maconha no meio. 

- Fume, mon amour! Aqui é cobertura de gente rica, propriedade privada, minha vontade é a única lei. Prestou atenção neste filme? É estrelado por Vincent Price, este ator que faz aquela voz macabra na música Thriller do Michael Jackson, esse filme é um clássico do horror cult. Dr. Phibes é um homem rico, doutor em Teologia, e sua amada esposa Victoria morreu em decorrência de um erro médico em um procedimento cirúrgico. Na ânsia de salvar sua esposa, Phibes dirige em alta velocidade e acaba precocemente acidentando-se na estrada antes de chegar ao hospital. Ambos são considerados mortos e a posteriori  enterrados no mausoléu da família Phibes. Na verdade  Dr. Phibes não morreu, sobreviveu com algumas sequelas e decidiu vingar-se de todos que estiveram  presentes no procedimento cirúrgico de sua amada esposa. Aliás, procedimento mal sucedido.

- Olha, interessante! Vamos degustar esse cafezinho gostoso enquanto assistimos. Quem sabe a arte contribua em algo nesse plano.

       Hermann achou muitíssimo interessante esse filme, admirou a maneira como Phibes resolveu vingar-se de dez pessoas e os símbolos místicos que ornou para cada vítima. Cada inimigo representando uma praga do Egito, uma refinada vingança digna de  aristocrata. Informou-se com seu amigo, agente da PCE, de que o maníaco sairia em diligência às sete horas da manhã do próximo dia.

- O automóvel vai deixar a PCE às sete horas da manhã, a interceptação tem que ser feita no perímetro de Piraquara. Agora teremos que ter uma perfeita sincronia, cautela tecnológica, agilidade, para capturá-lo sem que exista a necessidade de ferir alguém. Estamos cometendo um crime mas não somos bandidos. Bandido é quem segue ideologias específicas, nós apenas estamos fazendo justiça social.

- Já viu o meu revólver?

- Deixa-me ver, por favor! Até empolguei-me agora. 

- É um Taurus Tracker RT627, custa quase seis mil reais, é uma arma boa. Pegue-a. A partir de agora é sua.

- Uau.

- O Jhonny pode ser o motorista, enquanto nós faremos a abordagem e transferência do capturado para o porta-mala. Após ter certeza de que eles passarão pelo trecho antes do viaduto, que vai sentido PCE, podemos interditar a estrada com alguns objetos perfurantes. Assim que eles pararem, fechamos eles com nosso veículo, damos voz de captura e atiramos nos quatro pneus. Seguimos mais um pouco até a chácara de uma amiga minha, Monique Palmerão, lá embarcaremos num voo fretado de helicóptero até o Pestana.

- Você está louca? Trazê-lo para o seu apartamento? Essa chácara não é longe?

- Queridinho, do heliponto até aqui é tudo área sob minha responsabilidade. Não há nenhuma preocupação com vigilância, o colocamos desacordado em um assento. Simples. Quanto à chácara, não fica nem quinze quilômetros de distância do local designado para abordagem e captura.  Dentro dessa realidade, é o máximo que consigo ajudar. Mais que isso, queridinho, aí não tenho como contribuir.

- Eu achei que helicóptero cabia somente duas pessoas.

- Não, alguns possuem modelos com mais assentos. Esse é especial, alugarei de um amigo fazendeiro que o utiliza para ser bon vivant com suas amantes. Falarei que preciso transportar um cliente casado, não fará objeção. Fico preocupada da Polícia Militar e Civil rastrear nossa comunicação via rádio. Deveríamos era coordenar tudo sem a linguagem Q, sem usar esses rádios, manter como via de comunicação os smartphones mesmo. Na Polícia Civil não tenho mais amigos, a maioria morreu ou está aposentado faz tempo, temos que cuidar bastante com eles. Instalamos o Telegram que tem outro tipo de criptografia, sigilo absoluto garantido pois há a opção de desintegrar as conversas em um determinado período de tempo. Jhonny fica surpreso.

- Uau, Kelly, você apesar de septuagenária é conectada com todas as tecnologias atuais. Parabéns.

- Sou bem vivida mas não paro no tempo. Sei haurir o que cada década dispõe de bom. Aliás Jhonny, que bom que você falou um pouco. Estava muito misterioso.

- Ei Kelly, não parece mas o Jhonny é professor universitário assim como eu. Aliás, mestre em Política Externa Internacional. (Hermann fala sorrindo)

- Que exemplo para o Brasil, dois intelectuais planejando um assassinato? (Kelly fala gargalhando)

- Exemplo sim, já que a militância não ter surtido efeito, as leis não estão coibindo, vamos mostrar o pequeno sabor de uma guerra civil. Aí sim passarão a tremer toda vez que pensarem em nós. Esse é o problema de estudar demais, a realidade massacra com sua crueza e reformula paradigmas.

- "Pensarem em nós"? Você não é um homossexual, talvez bissexual. (Kelly fala expressando dúvida)

- O que fizeram a estes homens também fere uma parte de minha existência. Eles não terão a minha misericórdia e compaixão, assim como não tiveram com às pobres vítimas. Amanhã este desalmado, até o fim do dia, estará morto e ridicularizado em público. (diz Hermann em tom de cólera)

- Quando eu estava no Ensino Médio, fui aluno de Colégio Militar, o melhor aluno da sala aparentava ser homossexual. Ele não era levado a sério como gostaria de ser tratado, alguns anos depois matou-se. A violência se dilui em muitos espectros. Imaginem quanta tristeza ele passou, quanto desgosto com a humanidade, a ponto de não querer viver mais? Esse menino tinha tudo para ser um excelente profissional e brilhar. Não brilhou. Apagaram sua luz, mataram seus sonhos, quebrantaram seu sopro de vida. (lamenta Jhonny)

- Sei que posso parecer uma pessoa insensível mas a última coisa que devemos fazer é abrir mão das nossas vidas. Justamente é isso que quem nos odeia quer. A nossa morte! Sobreviver perante o caos é um ato de resistência. Você acha que cheguei onde cheguei sendo feliz? Mulher sabe ser maldita e competitiva. Mulher não tem remorso algum em roubar o homem da outra, mesmo que sua amiga o ame profundamente. Mulheres destroem casamentos de forma voraz. Mais que isso, quando uma mulher sabe que é mais bela e jovial que outra, usa esses atributos para rivalizar e galgar posições na sociedade. Dificilmente uma mulher terá outra amiga mulher, isso você está ouvindo de uma genuína heterossexual. Quando se é casada com um belo homem, com status e honra, o recomendado é mantê-lo próximo da família. Puta velha  e experiente falando! A outra vai desejar sua vida, sentirá inveja e roubará o seu príncipe encantado. E aí uma mulher sentirá a verdadeira amargura, quando percebe que está velha demais para o amor e lhe roubaram aquele que por um tempo a fez muito feliz. Mulheres também tem suas dores, principalmente porque  a maioria dos homens não sabem amar. Além de não saberem amar, são imaturos e esperam que as esposas ajam como extensões das mães.

      Após a fala Kelly fica abatida e então decide montar um fluxograma com todas as etapas e materiais necessários à caçada. Na verdade ela está priorizando uma metodologia, na qual consiste em primeiro racionalizar as fases em um fluxograma e posteriormente verificar quais materiais são necessários e por último confeccionar o roteiro para a operação. O roteiro só será engendrado após a análise quantitativa e qualitativa dos dados auferidos. Jhonny, como professor de Política Externa Internacional, começou a recordar de alguns eventos de violações de Direitos Humanos pelo mundo e teve a ideia de torturar o  opróbrio. Jhonny conclui o seguinte:

- Então Kelly, o clímax da operação é a captura. Aqui está tudo sob controle. É o que penso.

- Sim, exatamente.

- Kelly, posso fazer uma pergunta?

- Oui.

- Você já matou alguém? É que você parece estar tão naturalizada, sem suspense, falando tão mansamente. Se fosse seu primeiro assassinato, não sei, suponho que talvez estivesse mais assustada ou tensa.

- Menino, tenho setenta e cinco anos. Nada mais nesta vida, ou no fim dela, impressiona. Nessa altura da vida eu posso ser transgressora em níveis nababescos. É o luxo de ser velha.

- Entendi, boa resposta.

       Próximo das vinte e duas horas o roteiro da operação já estava consolidado. Por unanimidade todos decidiram que seria "Operação Edson Néris da Silva", visto que Edson Néris foi assassinado por skinheads em São Paulo, no ano de dois mil, de forma brutal e covarde. Jhonny explicou à Kelly que Néris foi um adestrador de cães honesto, teve o seu direito de viver negado em decorrência do preconceito. A maioria dos criminosos mal cumpriram suas penas, enquanto a mãe de Edson está com o coração destruído para todo o sempre. 

- O primeiro revide social precisa ser marcante e significativo, gerará precedentes e inspirações coletivas. ( diz Jhonny entusiasmado)

- Olha amigo Jhonny, realmente fico feliz com seu ânimo, visto que esteve boa parte do tempo calado. (diz Hermann)

- Entre aceitar cooperar em um assassinato e a ficha realmente cair, leva um tempo, assimilar requer paciência. Agora a ficha caiu e as motivações ficaram mais sólidas.

       Decidem cochilar um pouco, até três horas da manhã, quando derradeiramente partiriam rumo à Penitenciária Central do Estado em Piraquara.


V - O SEQUESTRO


       Exatamente às três da manhã, todas as luzes da cobertura acendem-se e Kelly surge estonteante em um belo  vestido vermelho de pura seda,  luvas de couro da Dior e um colar de âmbar com pérolas negras. Era de uma classe e requinte que lembrava a Belle Époque, sofisticação digna da realeza. Além disso começou a tocar Hymne a L'amour, instrumental, enquanto ela mesma prepara suco de laranja e omelete, isso seria o desejum e sustento por grande parte do dia.

- Bom dia. Algum de vocês tem alguma incerteza nessa operação? (pergunta Hermann)

- Olha, depois que a ficha caiu não tenho mais incertezas. A dor das vítimas é minha dor também. (diz Jhonny)

- A causa homossexual não me diz respeito diretamente, visto que sou heterossexual, mas compartilho da mesma indignação por tratarem-se de crimes injustos. Além do mais, a colaboração faz parte do acordo e o que mais desejo é o cumprimento do mesmo. Só tenho certezas, na minha idade, só certezas. (diz Kelly com um olhar maroto)

- Pessoal precisamos de uma kombi mais ou menos, conheço um verdureiro que está louco por dinheiro. Dois carros serão desnecessários à missão. Vamos bem cedo lá, dou cinco mil na mão dele, o cara já libera as chaves e assina ali mesmo a transferência. De lá vamos para Piraquara. O bom da periferia é que ninguém nos conhece, passaremos despercebidos. 

       Kelly sugere que eles saiam por primeiro, de modo que os registros não os identifiquem juntos, e depois ela sairia sozinha como se estivesse indo para outro caminho. Dirá ao recepcionista que tratará de uns assuntos imobiliários e pretende regressar pelo heliponto mais tarde. Combinam de encontrarem-se em frente ao Colégio Positivo da rua Vicente Machado, então solicitam no smartphone uma viagem com destino ao Bosque do Fazendinha.  A kombi vai ser comprada de um verdureiro, conhecido de Jhonny, que não desejava mais o automóvel. O indivíduo estava abarrotado de dívidas. No Bosque do Fazendinha celebrou-se a negociação e venda, um procedimento instantâneo e prático. Jhonny sabia que era maneira mais simples de conseguir um carro sem muita burocracia e excentricidade. O verdureiro olhou com certa estranheza para Kelly, porém a empolgação com o dinheiro foi maior e logo partiu embora. Hermann ligou a ignição, a kombi velha deu um tranco que quase fez Kelly bater a cabeça no vidro dianteiro, depois funcionou bem  e Jhonny dirigiu até Piraquara. Às seis horas da manhã, pontualmente, chegam ao destino e estacionam  próximo viaduto que dá acesso a estrada rumo à Penitenciária Central do Estado Não havia como falhar na interceptação, o veículo do Depen iria passar exatamente em um trecho específico. Fato certo.  Efigênio, seu amigo Agente de Cadeia Pública, estava quase no final do plantão e coincidentemente resolveu telefonar para Hermann.

- Opa Hermão, bom dia!

- Bom dia.

- Cara, meu plantão está acabando daqui a pouco. Saio às sete em ponto, nesse horário o "Soroka" vai sair para perícia, avisem seus amigos e coletivos de imprensa que antes de oito da manhã já estará circulando por Curitiba. Ele inclusive já está tomando café, enquanto aguarda as ordens para ser conduzido ao veículo. Assim que ele sair eu ligo novamente, esteja atento!

- Não sei nem como agradecer por tamanha informação.

- Façam um protesto por justiça!

- Posso garantir que ela será feita. Gratidão. Aguardo seu sinal.

- Combinado. Até.

          Passados uns cinquenta minutos, Efigênio avisa que o carro do Depen está saindo com dois agentes e somente um está portando arma de fogo.  Kelly avistou de longe o veículo e gritou:

- É agora ou nunca, da racionalidade à barbárie. É agora!

       Hermann fez napalm caseira que tinha aprendido na Deep Web. É uma mistura de isopor, com gasolina e mais alguns elementos, produz uma substância viscosa que não apaga fácil e pode chegar até mil graus celsius. Aquele trecho da rua ficou intrafegável, as chamas exalavam uma fumaça meio esbranquiçada que dificultava a visão. Em menos de dois minutos o carro do Depen avistou as chamas, reduziu velocidade e parou. As duas portas abrem-se e saem os agentes meio confusos com o que está acontecendo. Nesse momento Jhonny acelera a kombi e fecha a saída do veículo, Hermann coloca uma máscara de palhaço  e dá a voz de sequestro:

- Deitem no chão agora ou levam tiro na cabeça!

      Kelly coloca uma máscara da época vitoriana e diz a um dos agentes:

- Abra o porta-mala e entregue-me o prisioneiro, s'il vous plaît!

- A chave está na ignição, só abre com a chave. 

       Ela celeremente vai até o carro, tira a chave da ignição e abre o porta-mala. Hermann, pela primeira vez na vida, estava diante de um confesso homicida de homossexuais. Sua primeira atitude foi apontar uma arma, enquanto Kelly o sufocou com um pano embebido em éter. Desmaiado, amarraram seus pés,  mantiveram as algemas e o jogaram dentro da kombi. Seguiram viagem até a chácara Vaca Feliz. Assim que a kombi partiu, um dos agentes comunicou-se pelo rádio com a Polícia Militar e Civil, iniciaram-se as buscas na região.

- Kelly do céu, espero que esse helicóptero não demore muito não. A Rone está atrás da kombi, sorte que não conseguiram estruturar um retrato falado. Prestaram atenção somente nas pérolas negras do colar. Estou acompanhando tudo pelas redes sociais, principalmente twitter, que narra os eventos em tempo real. (diz Hermann)

- É para chegar daqui a pouco, esse tipo de serviço é muito caro e eles gostam de receber dinheiro. Não irão demorar. Olha lá, daqui estou vendo o helicóptero chegar.

- E a kombi? (pergunta Jhonny)

- Minha amiga pediu para afundar no lago, único jeito da polícia não achar. Por isso escolhi essa kombi velha, a serventia dela era só para capturar esse Soroka.

- Ah entendi, então vou abaixar o freio de mão e ir empurrando até cair no lago.

       O piloto do helicóptero era um conhecido de Kelly, estava acostumado a transportar com sigilo, mal olhou para o passageiro. Sua missão era pilotar sem observar ou questionar e essas foram as diretrizes de sua conduta durante o voo. Em Curitiba só dois hotéis oferecem serviços de luxo, com um bom heliponto, e o Pestana é um desses hotéis. Assim que chegam ao heliponto, desembarcam rapidamente e já adentram em um elevador exclusivo.

-   A parte mais difícil era a captura. (diz Hermann)

- Sim, aqui eu sou a rainha suprema.

        Eles arrastam o corpo até o hall de entrada da cobertura, onde Kelly decide que Soroka deve ser amarrado em uma cadeira para o devido interrogatório. Um verdadeiro interrogatório, que nem o Estado foi capaz de conseguir.

- Mamãe deseja  que você faça esse aí esse aí desabafar bastante,  faça-o contar tudo e um pouco mais. Cumpra sua vingança. (diz Kelly com feição de maldade)


VI - O INTERROGATÓRIO E ASSASSINATO


       Hermann sentia muito ódio, imaginava que qualquer um poderia ter sido vítima deste monstro. Inclusive ele. Inclusive aqueles a quem tanto amou. E isso trazia uma ira desmedida, um asco imensurável, um execrável sentimento de aversão e impiedade. Kelly ia jogar metade de uma garrafa de água Perrier no rosto de Soroka, quando Hermann foi até a privada e coletou água em um pequeno vaso. A água da privada, urinada, acordou o criminoso.

- Bem vindo ao inferno! Aqui é uma cobertura de gente rica, podemos fazer o barulho que quisermos porque aqui é um edifício de luxo. Boa tecnologia. O som não vaza tão fácil. Além do mais vamos sufocar seus gritos com música alta, não se preocupe, ninguém o viu adentrar aqui.

- Por favor, socorro, estou pagando pelos meus crimes.  (diz Soroka com fala mansa)

- Pagando? Você está vivo ainda. Não consigo encontrar nenhuma pena que seja equivalente à vida. Todos os dias você faz várias refeições, um banho de sol, conversa com outros detentos e seu coração bate. Você pode dormir com a certeza que terá um amanhã. Aquele estudante de Medicina da PUC não teve essa oportunidade de cuidar da sua mãe, de exercer uma profissão, você finalizou a existência dele. Para quê? Usar uma droga mequetrefe como o crack. Um viciado da pior espécie acha que pode decidir o destino de alguém?

- E você não é o Estado para julgar. Não te diz respeito o que aconteceu, aliás nem te conheço. A polícia deve estar atrás de mim. (Soroka eleva o tom de voz)

- Bom, eu sei que você é um drogado miserável e analfabeto. Um merdinha abjeto. E merdinhas como você desgraçam a vida de gente boa, depois continuam parasitando o Estado como se nada tivesse acontecido. Muitos nem ficam em regime de reclusão,  por isso debocham das leis deste país, desdenham que a justiça nunca ocorre. É preciso mostrar que a punição vem de forma equitativa.

- Não te devo satisfação, cara. Você não é uma bichinha para estar tão dolorido por estas mortes.

       Nesse exato momento Kelly retira sua máscara vitoriana e coloca uma máscara do orixá Omolu indicada para rituais de sacrifício. Enquanto Hermann emite um olhar odioso, mortal, ela começa a bater em dois atabaques de maneira bem horripilante. Decidido, ele foi até a lareira, acendeu-a e esperou um dos espetos ficar incandescentes para regressar diante da cadeira.

- Ei Soroka, sabe como os nazistas torturavam na Segunda Guerra?

- Não faço a menor ideia, por favor, peço perdão pelas minhas palavras. 

- Eles encostavam lanças quentes na retina das vítimas, bastava um olho queimado que o réu confessava a transparência da alma. Relato hialino.

- Não queime meus olhos, por favor, eu imploro. Eu conto tudo.

- Fale a verdade, você odeia gays? Confesse!

- Não odeio, eles foram só vítimas mais vulneráveis. Poderia ter sido uma vítima heterossexual.

       Não convencido, Hermann fura o olho direito de Soroka com o espeto de churrasco.  Era possível sentir o odor do fluido entrando em contato com o espeto incandescente, exalava cheiro de carne queimada. Um odor nauseante.

- Desgraçado, furou meu olho. Pois saiba sim que eu matei porque eram bichas. Eu desprezo, não considero e abomino bichas. Acho que fiz um bom serviço à sociedade, por isso a maioria dos agentes da lei suaviza nossas penas e nunca dá em nada.  Eles também odeiam bichas. Somos, no fundo, aliados.

        Hermann desistiu da tortura. Vai até a mesa e segura o Taurus, aproxima-se diante de Soroka e diz o seguinte:

- Já que você confessou a podridão de sua alma, vou confessar uma podridão minha. Sempre tive vontade de imitar Amon Goth, porém esse horror seria infligido apenas aos homens perversos, jamais em pessoas boas. Já ouviu falar dele ou seu analfabetismo é extremo?

- Sei não que merda é essa!

- Ele foi um nazista terrível, bastava olhar torto e ele atirava na cabeça.

- Chegou meu fim (abaixa a cabeça em resignação)

       Hermann dá um tiro na testa de Soroka, a bala estoura o osso occipital e boa parte da massa cefálica explode na parede. O sangue rubro espirra fortemente, enquanto o corpo treme convulsivamente nos seus últimos segundos de vida, Kelly batuca freneticamente nos atabaques e começa a emitir um som similar ao uivo de uma loba.

- Desculpa gente, não tenho habilidades para torturar. Já matei ao descobrir a resposta, não servia para mais nada. Missão cumprida.

- Sempre achei que vomitaria, passaria mal, tremeria, mas ele é tão asqueroso que eu gostei de vê-lo morrer. (diz Jhonny com voz de plangor)

- Nem torturou? Ah, esqueci de avisar que mandei instalar silenciador. Essa maravilha mata em silêncio. (diz Kelly)

- Torturaremos outros em um futuro não tão distante. Vamos cumprir o prometido. Este corpo precisa ser exposto com evidências de que ele foi morto por ser homofóbico.


VII - EXPOSIÇÃO DO CADÁVER E CHOQUE SOCIAL


       Hermann decidiu desmembrar braços, pernas, cabeça e tronco. Todos esses membros foram lacrados em sacolas com fecho ziploc e acompanhadas de um cartaz com a escrita "esse é o resto mortal de um homofóbico assassino", e cada parte desmembrada seria descrita no respectivo cartaz, sempre ressaltando que eram as partes do corpo de um homofóbico. A frase mais violenta dizia que "Soroka agora está no inferno, esse não faz mais mal aos gays".

        Com destreza limparam o ambiente, nem parecia que havia ocorrido um assassinato. Pra acabar com as pistas, Kelly decide mudar o material da parede e também o piso do hall. Assim poderiam extirpar qualquer vestígio da passagem do serial killer pela cobertura. Nem mesmo o mais conceituado centro de pesquisa poderia achar algum resto mortal do homem, não havia a mínima possibilidade deste evento ocorrer. Crime quase perfeito  pois ainda falta expor os restos mortais ao público curitibano.

- Restos mortais ficam por muito tempo, assisto CSI na tevê a cabo. Odeio canais abertos.  Melhor substituir o material para não desconfiarem de nada e é até bom aqui entrar em reforma pois vamos para outro lugar. Que Arlequina nada, aqui é Kelly Mendes. Sou a Arlequina da vida real. Agora vamos despachar essa carcaça e festejar o êxito da Operação Edson Néris dos Santos, pois estou carente de beijo na boca. 

       Hermann aproxima-se de Kelly e a beija com volúpia, numa calidez e virilidade, de modo que a mesma entendeu a sua gratidão. Sabia cumprir acordos e agir com generosidade quando convinha. Esse lascivo momento é interrompido com a ligação do agente Efigênio.

- Hermann os meus colegas foram atacados na ida à perícia, isso gerou uma confusão terrível. É que ele foi sequestrado. Está o maior BO aqui, cogita-se até exonerar boa parte da equipe de agentes desta unidade. Eu não ligo para a morte deste miserável, estaria completamente indiferente se não fossem as pressões administrativas. Achei que ONG's iam protestar, com cartazes, durante a perícia de um dos assassinatos. 

- Pois é. Fiquei esperando o carro do Depen chegar e nada, acabamos indo embora. De qualquer forma conte comigo caso precise de alguma ajuda. Falou. (desliga o telefone com um ar de preocupação)

- Não há nada que ligue-me a este sequestro. Para todos os efeitos sou uma velhinha aposentada, moradora de bairro nobre e consumidora de loja cara no Batel. Não fique pensando o pior, isso vai acabar em pizza. Aqui é Brasil.  Aliás já sei onde expor estes restos mortais.

- Onde? Já são onze e meia da manhã. (diz Hermann)

- No banheiro masculino do Pátio Batel. Aqui tem um carrinho para bebê, achei que ia ser mãe uns anos atrás,  colocamos as partes cortadas dentro dele e andaremos indetectáveis no shopping. Vamos dessa vez no meu carro, inclusive coleciono bonecas e tenho uma que parece a réplica de um bebezinho de colo. Aí entra no banheiro, despacha todas as peças em uma cabine só,  sai com o carrinho e encontra-me no corredor. Entramos em um bistrô, eu seguro a boneca como se fosse minha neta, e fazemos uma agradável refeição. Há um segredinho que só as socialites sabem, uma vez ao mês eles fazem reparos na vigilância e as câmeras não filmam por três horas. Esse hiato é o que temos para dispersar as sacolas em um local onde repercutirá, visto que hoje é o dia da manutenção. O sistema voltará a funcionar daqui duas horas, depois disso teremos que ir embora ou seremos registrados pelas câmeras.

- Vão achar o cadáver no banheiro. (indaga Jhonny)

- Aí nós vamos embora como uma boa e velha família conservadora assustada. Aquilo nem é cadáver mais, todo cortado, é treco do cacareco apenas. Irei ao Patio Batel usando Gucci, acha mesmo que alguém desconfiará de uma socialite? O dinheiro faz milagres, mon amour.

       Kelly tem um Porsche 911 Carrera, dois mil e vinte, uma verdadeira joia que causa boa impressão por onde passa. Sabia que ninguém desconfiaria de uma pessoa pilotando Porsche. Então conseguem alocar as partes no carrinho de bebê e o introduzem no veículo. Como a vaga é privativa, não há nenhuma câmera incidindo sobre o veículo. Isso garante total discrição nesta última etapa  da operação. Hermann adentra o banheiro masculino, no piso L2, e por sorte não há ninguém utilizando-o. Abre uma cabine, joga os sacos com os membros e seus respectivos cartazes grampeados. As vísceras e boa parte dos músculos a Kelly raspou e incinerou na lareira. As sacolas não ocupavam muito volume. Sua estética visual era mais simbólica, visava impactar, horrorizar e amedrontar. Abandona o banheiro, encontra Kelly no próximo corredor e vão comer lagosta para disfarçar a ida ao shopping.

       Depois de alguns minutos alguém grita o nome de Deus e diz que precisa chamar a polícia. O atendente do bistrô fica nervoso, meio desajeitado, vem até a mesa e diz:

- Senhores, algo terrível aconteceu, um homem foi encontrado morto em sacolas de ziplock. Além disso em cada sacola haviam mensagens, diferenciadas de sacola para sacola,  onde escreveram que ele morreu por ser homofóbico. Deve ser ritual satânico, eu vi a cabeça dele e estou horrorizado.

       Kelly demonstra medo e fala:

-  Gente, que absurdo! E agora? Estou com medo de sair ali fora e encontrar esta pessoa entre nós.  Atacou a crise de ansiedade agora, hoje em dia as pessoas são degeneradas, não se pode confiar em ninguém. Vejam só, uma senhora católica feito eu tendo que presenciar um crime hediondo desse. Na minha época não existia tanta puta assim, cafetina, usuários de drogas, esses lixinhos cracudos. A maioria era composta por pessoas de família. Tempos terríveis, é o fim do mundo. Só pode!

- Fique tranquila, senhora. A Polícia Civil está vindo, junto com o IML, averiguar e retirar  o cadáver. Aliás, já estão retirando. Mais uns vinte minutos e tudo estará resolvido. Pode degustar sua lagosta. Uma pena não saber quem deixou lá, visto que faz duas horas que o sistema de câmeras está passando por reparos técnicos. O banco de dados não registrou o ocorrido. Infelizmente. 

- Vai ser difícil alimentar-me sabendo que o corpo de um homem  estava em sacolas no banheiro.

- Sentimos muito pelo ocorrido e, mesmo assim, reiteramos o desejo de que tenha uma excelente refeição. No mais estamos à disposição, senhora. Com licença.

- Kelly você merece um prêmio dramatúrgico por sua dissimulação. Eu sei que está com fome. (diz Hermann em tom de sarcasmo)

- Claro, esse evento não reduz o apetite. Estou ao seu lado, aí meu apetite de loba só aumenta. Vamos esperar esse tumulto passar e viajaremos à praia. Maresia, você e eu, mordomia. Não quero saber de crime homofóbico durante dois meses. Já não basta um outro amigo meu que matou um inimigo em pleno Bec Bar, o desmiolado estourou a cabeça de um rapaz e agora está fugido na Guiné Equatorial. Não sei o que inventa por lá. Esses meus meninos, com instinto criminoso, mamãe adora fomentar mentes criminosas e brilhantes. 

- Kelly do céu, a foto das sacolas já está em todos os jornais do Brasil e do mundo. Polêmica total. Até no New York Times estão falando, CNN, estou perplexo. Não faz nem uma hora que as sacolas foram encontradas, pelo funcionário da limpeza, o mundo digital realmente é instantâneo. Até  extremistas talibãs, no Afeganistão, mostrando em grupos de whatsapp que os ocidentais estavam matando homofóbicos. O mundo todo! E todos sabem que era um serial killer de gays, que foi interceptado a caminho de uma perícia, que sua morte foi represália. A repercussão veio, nunca imaginei que atingiria esse nível. A mensagem foi disseminada, a missão foi cumprida.

- Agora vamos à praia, vou comprar sunguinha do Pato Donald para que use.

- Sunga do Pato Donald? Que brochante.

- Por dois meses você deverá apenas divertir-se comigo, a sunga do Donald é peça essencial.  É brincadeira,  o crime foi perfeito, parabéns. Daremos conta do álibi. As câmeras não o filmaram aqui.  Praia e diversão. O que acha? Peça férias na sua faculdade e venha comigo.



Continua no próximo conto:

A RONE em Guaratuba: Kelly corre perigo



* Conto ficcional ambientado na cidade de Curitiba,  mesclado com alguns elementos do cotidiano.


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