Conto de terror: o assassinato do mendigo no Passeio Público: quatorze horas para um crime banal.

O assassinato do mendigo no Passeio Público: quatorze horas para um crime banal.

       São sete horas da manhã. Está um frio invernal em Curitiba, o despertador toca e anuncia mais um dia de trabalho. André Toulon estica o braço, segura o celular e desabilita o despertador. Levanta da cama, toma um banho, prepara o café e veste suas roupas. Escolhe um lindo cachecol que ganhara de presente de um amigo, que estivera em Paris e comprou na sua passagem por umas lojas na Champs-Elysées. Olha-se no espelho, arruma meticulosamente os cabelos, alinha o blazer de linho egípcio que mandara o alfaiate engendrar. Pega o vidro de Olympéa, da Pacco Rabanne,  espirra nos pulsos e esfrega-os até que exalem um agradável odor. Posteriormente borrifa no pescoço e um pouco na camisa. Pronto, estava cheiroso. Então verifica se não está esquecendo de nada, abre a porta do apartamento e parte rumo ao trabalho.  Desce todas as escadas do edifício, cumprimenta o porteiro e sai apressado,  pela rua Carlos Cavalcanti, até que um morador de rua (na faixa dos seus trinta anos) o aborda grosseiramente e falando por meio de gírias:
         - Bom dia senhor, na humildade, sou "certo pelo certo", eu estou pedindo mesmo é para tomar "uns goles". Tem aí, setenta centavos, para rachar comigo?
          - Infelizmente não tenho como ajudar.
          - Com essa roupa? Você não tem setenta centavos? 
          - Só uso cartão moço, desculpa.
          - Esses lixos que nós gostamos de roubar. Não fortalece com "a banca", nós roubamos. Nós somos ladrões mesmo. Você para nós é lixo. Aqui é banca.  Aqui é crime.
            - Não sou obrigado a sustentar seus vícios.
             Num ato de revolta e ódio, o pedinte arremessa contra Toulon uma garrafa de vidro mas felizmente não o atingiu. A mesma colidiu-se com um poste, causando uma miríade de fragmentos e assustando os pedestres.
           - Eu deveria era chamar a polícia, seu infame! (diz André Toulon em tom revoltado).
        Ele tem um verdadeiro horror a mendigos, principalmente aqueles que abordam os pedestres de forma abrupta e imperativa. Odeia mais ainda aqueles que fazem balbúrdia de madrugada, brigam entre si, utilizam-se do mais baixo e tacanho vocabulário possível, atrapalhando a noite de sono de quem mora na região. Fitou o desafeto com um olhar maligno, repleto de rancor e ira.
            O malandro ao perceber a proporção da confusão, saiu em retirada de forma célere e sumiu da vista de todos... E o dia de trabalho transcorrera tranquilamente, tanto que este incidente matinal havia ficado esquecido por horas e era tido com um fato passado e consumado. Depois de sair do trabalho, resolvera caminhar um pouco no Passeio Público e descansar apreciando a beleza do lago e da natureza. O trauma matinal estava em segundo plano, até o momento.
 O parque fica muito escuro após às dezenove horas e algumas áreas tornam-se bem sombrias. Acende um cigarro, embaixo de uma árvore, e fica tragando a nicotina enquanto observa às luzes refletirem na água. A temperatura está baixa, quase dois graus centígrados, havia um prazer em tragar o Mallboro naquele frio. Formava-se uma fumaça densa que demorava para dissipar-se. Tragos e mais tragos. Eis que aquele rapaz, que o atacou pela manhã, surge próximo à sua direção. O mesmo não lembrava-se direito do ocorrido, mas para Toulon o ocorrido estava marcado com sangue na testa. A raiva fervilhou entre os poros. O ódio cooptou todas as sinapses. Olhava o indigente como uma fera bestial analisa sua vítima de caça. Resolveu voltar para casa. O relógio marcava dezenove horas e quinze minutos. Decidiu infligir sua vingança, sua sentença, aquele era o momento e o contexto ideal.
         Correu para o prédio, abriu ofegante a porta do apartamento, lembrou-se de que possuía um frasco de cianeto de potássio que fora utilizado para eutanasiar um cão com cinomose em fase terminal. Vasculhou incansavelmente todas as caixas que tinha no quarto, verificou em todas as gavetas, até que achou o tétrico frasco. Rapidamente andou até a cozinha, abriu a geladeira, pegou uma garrafa de Tequila Patrón, fechou a porta do apartamento e voltou para o Passeio Público. Entrou pelo portão, caminhou fugaz diante do módulo da Guarda Municipal e chegou até a zona escura, perto do viveiro das aves, onde o inimigo estava fumando uma pedra de crack no cachimbo. Tudo foi intenso, súbito, de última hora. Nada estava planejado. Tênue linha entre a insanidade e a razão ou entre a civilização e a barbárie. A selvageria, o instinto, em questão de segundos. Olhou mais uma vez a vítima, estava decidido a exterminar aquele homem.  Respirou fundo e  certeiramente foi cumprimentá-lo:
- E aí, beleza?
- Você é o irmão que rolou" a fita hoje" de manhã?
- A "fita" é a ameaça e a garrafada? Foi, mas já passou! Mas eu vim aqui  para desculpar-me, trouxe até a melhor tequila do mundo:Tequila Patrón!
- Você é humilde, desculpa por qualquer coisa, desculpa por essas ideias fracas, essas "fitas" são coisas das "caminhadas da vida".
          Nisso ele colocou dez gotas do cianeto no copo de plástico, discretamente, e encheu com tequila. Ainda disse:
- Tequila tem que tomar de uma vez só, para dar boa sorte. Você toma nesse copo e eu nesse. Ok?
- Claro, irmão!
  Inocentemente ele tomou, de uma vez só, frugalmente, o conteúdo do copo.
- Nossa, que tequila boa. Amorteceu minha garganta, gostei de tomar.
- Eu gostei muito mais (diz André em um tom insidioso).
          Em poucos segundos o homem sentiu uma amargura na boca, a mandíbula ficou paralisada  e o seu corpo caiu na grama. Emitiu sons laringotraqueais análogos aos sons que antecedem a êmese. Toulon aproxima-se do sujeito, caído na grama, e o observa agonizar. Decide cochichar  algumas maledicências no ouvido do desvalido:
- Deveria ter cuidado com as inimizades. Eu matei você e nunca ninguém saberá. Crime perfeito. Ninguém perderá tempo fazendo uma boa necrópsia em mendigo. Sou pérfido. Vá para o inferno!
         Calmamente guarda a garrafa de tequila na mochila, os dois copos, enquanto o coitado emite seus últimos suspiros. A midríase era ululante. Estava feito, a morte o ceifara. Sabia que o cérebro dele estaria ativo por mais uns cinco minutos, de consciência, e que aquela massa morta ainda sofreria psiquicamente, por mais alguns minutos, até os neurônios morrerem. Por isso falou perversidades próximo ao ouvido, quis impor terror e angústia. Era cruel, tinha ciência, mas gostava de ser assim. Olha mais uma vez o falecido, coloca a mochila nas costas e dirige-se até  o módulo da Guarda Municipal para avisar sobre a presença de um corpo inerte no gramado. Introduz na boca um halls de cereja, para disfarçar o odor alcoólico do Patrón. Olha o  relógio Apple Watch, no pulso, e vê que são dezenove horas e quarenta e cinco minutos. Chega ao módulo policial e cumprimenta dois guardas:
- Boa noite! Tem um homem caído na grama, imóvel e não responde a nenhum estímulo. Fiquei preocupado e vim avisar à Guarda Municipal. Tem um cachimbo e isqueiro ao lado dele, além de uma sacola com algumas latinhas amassadas. Só. É naquela árvore, ao lado daquele viveiro de flamingos. Chamei, chamei, chamei... Nada dele responder.
Uma equipe vai até o local indicado. Passados alguns minutos, os guardas informam que um morador de rua teve mal súbito (provavelmente por decorrência do abuso de álcool e drogas) e que estava sem sinais vitais, inclusive o SAMU iria levar ao Hospital do Trabalhador para tentar reanimar. Cinicamente o rapaz finge estar em choque, teatraliza um simulacro de empatia, ainda faz o sinal da cruz e pede que São Pedro receba bem este humilde servo de Deus. Fica cabisbaixo, como um exímio ator circense.
Os policiais agradecem-no por tê-los informado sobre o ocorrido e o dispensam do local. Foi para casa. Sequer notaram o hálito etílico, muito menos perceberam um contato prévio com a vítima. Toulon foi considerado apenas um transeunte que avisara as autoridades sobre uma infeliz fatalidade. Alguém que revelara um acidente trágico, um mal súbito, um infeliz infortúnio do destino. Nada mais.  Os guardas anunciaram, no rádio comunicador, que o corpo havia sido encontrado às vinte horas em ponto por populares.
        Uma hora depois, às vinte e uma horas, um jornal local noticiou o falecimento de um morador de rua (no Passeio Público), em decorrência de hipotermia e desidratação. A prefeitura se propôs a realizar uma campanha de agasalhos para moradores de rua. Toulon desligou a televisão. Tomou um banho quente. Acendeu mais um cigarro de Mallboro, fumou na sacada da cobertura, tinha um excêntrico prazer em ver a fumaça densa na atmosfera fria. Observou a cidade, observou o parque, até o cigarro queimar por completo. Sabia que aquela noite precisava ser dissipada, como a névoa, como os tragos do cigarro. Dormiu angelicalmente, a rua Carlos Cavalcanti madrugou silente e fria. Nunca mais lembrou do ocorrido. Nunca mais bebeu Patrón. O segredo estava hermético.
(Almir)









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